Missão do Quadro

“Dr. Nesan Entrevista” será um espaço para conversas inteligentes e acessíveis com profissionais da saúde, pesquisadores, pacientes, e especialistas, revelando bastidores, experiências clínicas, descobertas, desafios e histórias reais do mundo da saúde.

"Quem vive a saúde, fala aqui"

🎙️ Autoentrevista – Dr. Nesan Responde

  1. Você está há mais de duas décadas como plantonista noturno em laboratório. O que o silêncio da madrugada te ensinou sobre a saúde humana?

    R- A avaliação laboratorial vai muito além de soro, plasma ou urina. É fundamental enxergar o paciente como um todo, compreendendo sua fisiologia básica para interpretar de forma mais segura qualquer alteração. Quando entendemos os processos do organismo, conseguimos não apenas identificar desvios nos exames, mas também contextualizar os resultados — o que nos dá confiança para liberar laudos com critério e responsabilidade.

  2. Qual foi o caso mais marcante (ou inquietante) que você viveu durante um plantão noturno e que nunca esqueceu?

    R- Foram muitos casos marcantes, mas um dos mais recentes e que me tocou profundamente foi o de uma bebê que passou muito mal após ingerir uma vitamina de mamão com castanha. Ela apresentou episódios intensos de diarreia e vômitos e precisou ser transferida para uma UTI infantil. Acompanhei sua evolução ao longo de quase três semanas, torcendo por cada melhora… mas, infelizmente, ela não resistiu. Situações como essa nos lembram do quanto pequenos detalhes na alimentação ou nos cuidados podem ter consequências graves, principalmente em crianças.

  3. Você é mestre em neurociências. Em que momento da sua prática laboratorial essa formação fez total diferença na leitura de um exame ou no entendimento de um paciente?

    R- Infelizmente, o mestrado não era voltado diretamente para a prática clínica, mas sim para a área de pesquisa científica. Ainda assim, foi extremamente valioso. Ele me ajudou muito na interpretação de exames como o líquor (LCR) e também na compreensão de achados em exames de imagem, como tomografias e ressonâncias magnéticas do encéfalo. Esse conhecimento complementar fez diferença na hora de correlacionar dados laboratoriais com manifestações neurológicas dos pacientes.

  4. O que o doutorado em neurociências te provocou a ponto de não concluí-lo? Foi escolha ou ruptura?

    R- Como já comentei, tanto o mestrado quanto o doutorado eram voltados para a pesquisa científica, e isso sempre me causou certo incômodo, pois sentia falta de uma aplicação mais direta na prática clínica, que é o meu chão. Durante o doutorado, essa insatisfação se intensificou. Houve uma ruptura inevitável com o orientador, por divergências de ideias, e ao mesmo tempo os plantões noturnos já estavam me consumindo física e emocionalmente. Foi uma fase difícil, mas necessária. Não me arrependo. Tinha que ser assim. Algumas decisões, mesmo dolorosas, nos reposicionam no caminho certo.

  5. Por que você decidiu transformar a sua experiência em um projeto digital como o Alerta Saúde? Qual foi o ponto de virada?

    R- Desde criança, sempre gostei de ler e escrever — minha mãe, inclusive, achava que eu acabaria sendo jornalista. Sou um inquieto por natureza, e essa inquietação me acompanhou na profissão: sempre fui de discutir relatos de casos, trocar experiências e levantar questionamentos com os colegas de plantão. Em 2023, comecei a escrever e-books, mas senti que precisava de um espaço mais amplo, onde eu pudesse reunir tudo em um só lugar. Foi assim que, em 2024, coloquei no ar o AlertaSaúde.com — um projeto que nasceu da vontade de compartilhar conhecimento real, prático e acessível, de profissional para profissional, sem enrolação.

  6. Você usa o termo 'biomarketing digital'. O que isso significa na prática e como enxerga essa nova fronteira entre ciência e comunicação?

    R- Não sei se esse termo já existe formalmente, mas acabei chamando de "biomarketing digital" porque representa exatamente isso: um profissional da saúde atuando no marketing digital, com o “bio” na frente para diferenciar de outros perfis que estão na rede. A conexão entre ciência e comunicação é, na minha visão, essencial para promover entendimento real e prático. Em meio a uma avalanche de desinformação e conteúdos falsos que circulam no Brasil e no mundo, precisamos de vozes técnicas que traduzam o conhecimento com responsabilidade e acessibilidade.

  7. O que os laboratórios privados mais erram na forma de comunicar resultados, protocolos ou orientações aos pacientes?

    R- No início da minha carreira, as acreditações e certificações hospitalares e laboratoriais ainda estavam engatinhando no Brasil. Hoje, elas funcionam como verdadeiros selos de qualidade, padronizando processos desde o atendimento inicial até a liberação dos laudos. Essas certificações oferecem uma base sólida que ajuda a mitigar falhas, garantindo mais segurança, rastreabilidade e confiança tanto para os profissionais quanto para os pacientes.

  8. Se pudesse reformular a forma como a população interpreta o papel do biomédico, o que gostaria que todos soubessem?

    R- O profissional biomédico ainda é, infelizmente, pouco valorizado, muitas vezes mal remunerado e, em alguns contextos, até desrespeitado. Parte disso se deve ao fato de atuarmos nos bastidores dos laboratórios, longe dos olhos da população, o que contribui para uma visão limitada sobre nosso papel. Muitos ainda nos associam apenas à coleta ou análise de exames como urina e fezes — quando, na verdade, somos especialistas altamente capacitados em diversas áreas do diagnóstico e da pesquisa. Precisamos ocupar mais espaços de fala e mostrar que o biomédico é parte essencial da engrenagem que salva vidas diariamente.

  9. Como você equilibra sua identidade como cientista com sua persona comunicadora no digital? Elas se fundem ou ainda se estranham?

    R- Hoje não atuo mais diretamente como cientista, mas trago essa formação comigo e aplico no dia a dia da prática laboratorial. O olhar investigativo, o hábito de questionar, buscar respostas e consultar artigos e manuais constantemente ainda fazem parte da minha rotina. No fim das contas, a ciência e a prática acabam se fundindo — porque para oferecer um diagnóstico de qualidade, é preciso mais do que técnica: é preciso pensar como um pesquisador, mesmo de jaleco no plantão.

  10. Por fim: o que o Ricardo de hoje diria ao jovem biomédico que começou de jaleco branco e hoje se vê como “Dr. Nesan” com voz própria na internet?

    R- Eu diria: continue sendo você, sempre — custe o que custar. Quem realmente reconhece o seu valor vai te respeitar justamente por isso. Não se molde para agradar os outros, nem tente caber em espaços que não foram feitos para o seu jeito de ser. Cada pessoa tem seu próprio tempo e trajetória. Às vezes penso que demorei para entrar no mundo digital, mas logo percebo que tudo aconteceu como precisava acontecer. O tempo certo não é o dos outros — é o seu. E o meu é agora.