Lacuna normativa na área da saúde: como a falta de regulamentação impacta serviços, profissionais e segurança do paciente
Os riscos da desatualização regulatória e seus efeitos na qualidade assistencial
10/12/2025
7 min ler


No papel, o sistema de saúde brasileiro é cercado por leis, portarias, resoluções e manuais de boas práticas. Na rotina, porém, quem vive o hospital, o laboratório ou a unidade básica sabe: há muitos buracos entre o que está escrito e o que realmente acontece.
Esses buracos são as chamadas lacunas normativas – situações relevantes para a segurança do paciente e para a qualidade assistencial que não estão claramente regulamentadas, ou foram regulamentadas em outro contexto histórico e hoje já não dão conta da realidade.
Um exemplo marcante é a falta de farmacêuticos em farmácias satélites e dispensários de medicamentos dentro de hospitais, mesmo em cenários de alta complexidade. Mas o problema não se limita a isso.
O que é, na prática, uma “lacuna normativa” em saúde?
Em termos simples, existe lacuna normativa quando:
a lei não trata de determinada situação (silêncio normativo);
a lei trata, mas de forma vaga, genérica ou desatualizada;
normas de diferentes esferas entram em conflito (lei federal x resolução de conselho x entendimento judicial).
Na saúde, isso se traduz em:
insegurança jurídica para gestores e profissionais;
espaço para interpretações convenientes (normalmente para reduzir custo, não para aumentar segurança);
assimetria de proteção: o paciente de um hospital pode estar mais protegido que o de outro, apenas porque um gestor decidiu seguir padrões mais rígidos, mesmo sem obrigação expressa.
Estudos sobre segurança do paciente no Brasil mostram que o arcabouço normativo ainda é fragmentado, com ausência de uma lei nacional específica de segurança do paciente, deixando a regulação dependente de resoluções da Anvisa, portarias e programas como o PNSP.
Farmácia hospitalar x farmácia satélite x dispensário: onde o farmacêutico some?
O que a lei diz de forma clara
A Lei nº 5.991/1973 e a Lei nº 13.021/2014 determinam que farmácias e drogarias devem ter presença permanente de farmacêutico responsável técnico durante todo o horário de funcionamento.
Além disso, portarias e normas específicas reconhecem a farmácia hospitalar como serviço de saúde e atribuem a responsabilidade técnica ao farmacêutico. A Portaria GM/MS nº 4.283/2010, por exemplo, reforça a centralidade do farmacêutico na farmácia hospitalar.
Sociedades científicas, como a Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde (Sbrafh), publicam padrões mínimos recomendando número adequado de farmacêuticos e equipe de apoio compatível com a complexidade do serviço.
Onde começa a lacuna: os “dispensários” e farmácias satélites
Na prática hospitalar moderna, não existe apenas uma farmácia central. É comum haver:
farmácias satélites em UTIs, oncologia, pronto-socorro, centro cirúrgico;
dispensários de medicamentos em unidades de internação, muitas vezes sob guarda exclusiva da enfermagem.
E é aqui que a norma não acompanha a realidade.
Decisões judiciais, incluindo entendimento consolidado do STJ, afirmam que dispensários de medicamentos não são obrigados, por lei, a manter farmacêutico presente em tempo integral, pois a exigência recai especificamente sobre “farmácias e drogarias” segundo a Lei nº 5.991/73.
Ou seja:
a farmácia central é claramente vista como estabelecimento farmacêutico → precisa de farmacêutico;
o dispensário/farmácia satélite, muitas vezes localizado dentro do hospital e com grande volume de dispensação, é enquadrado como “estoque”, “posto de enfermagem” ou “apoio” → passa sem farmacêutico, apoiado nessa brecha jurídica.
Exemplo real 1 – Pronto-socorro sem farmacêutico dedicado
Imagine um hospital de médio porte, com grande fluxo de pronto-atendimento e vários leitos de observação:
Os medicamentos são separados na farmácia central, mas o pronto-socorro mantém um pequeno “satélite”, com antibióticos, sedativos, broncodilatadores, opióides e drogas vasoativas;
Esse “satélite” é muitas vezes apenas um armário trancado, sob responsabilidade da enfermagem;
Não há farmacêutico circulando na unidade, checando doses, interações, diluições ou a reconciliação de medicamentos de uso domiciliar.
Do ponto de vista da lei, o hospital pode argumentar que o farmacêutico está presente na farmácia central e que o armário do pronto-socorro é “apenas um estoque controlado”. Do ponto de vista da segurança do paciente, porém, o risco é óbvio: uso de medicação de alto risco em cenário de urgência sem conferência farmacêutica à beira leito.
Exemplo real 2 – UTI com alto risco medicamentoso e cobertura parcial
Em UTIs adulto, pediátrica ou neonatal, o risco de erro de medicação é elevado: drogas vasoativas, insulinas, sedação contínua, nutrição parenteral. Padrões técnicos e guias de boas práticas recomendam presença ou apoio próximo de farmacêutico clínico.
Na prática, porém:
A UTI recebe bandejas montadas pela farmácia central;
Mantém um “depósito” de medicamentos de uso frequente;
O farmacêutico atende a UTI apenas em horário comercial ou “sob demanda”, para ajustes pontuais.
Fora do horário administrativo, especialmente à noite e fins de semana, quem gerencia – na prática – o risco medicamentoso é a enfermagem sozinha, muitas vezes com quadro reduzido.
A lacuna normativa mora justamente aí: não existe regra nacional que estabeleça parâmetros mínimos de farmacêuticos por leito, por turno ou por complexidade, ficando a critério do hospital e, às vezes, da acreditação voluntária (ONA, Qmentum, etc.), que nem sempre é obrigatória.
Por que essa lacuna é perigosa para o paciente?
A literatura brasileira e internacional sobre segurança do paciente mostra que:
erros de medicação estão entre os eventos adversos mais comuns em hospitais;
a presença de farmacêuticos clínicos em unidades críticas reduz significativamente erros de dose, interações graves e eventos adversos;
políticas de segurança do paciente ainda são parcialmente implementadas na rede, com dificuldades justamente em estrutura, processos e recursos humanos.
Quando a norma é omissa, o que prevalece é:
pressão por redução de custo de pessoal;
subdimensionamento de equipe (um farmacêutico para todo o hospital, às vezes em regime parcial);
responsabilização difusa: todos respondem pelo erro, mas ninguém tem condições ideais para evitá-lo.
Outras lacunas frequentes na regulação em saúde
Embora o foco aqui seja a farmácia hospitalar, a lógica se repete em outros pontos:
Segurança do paciente sem lei específica
O Brasil adotou o Programa Nacional de Segurança do Paciente via portarias e resoluções, mas ainda não possui uma lei nacional de segurança do paciente que amarre responsabilidades, financiamento e fiscalização de forma clara.Telemedicina e telessaúde em constante ajuste
A pandemia acelerou o uso da telemedicina, e embora haja resoluções do CFM e leis mais recentes, muitos detalhes (responsabilidade sobre exames, intercâmbio de dados, interoperabilidade de prontuários) ainda estão em construção, gerando interpretações divergentes.Dimensionamento de equipes em diversos serviços
Em muitas áreas (farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, biomedicina, psicologia) faltam parâmetros legais nacionais de número mínimo de profissionais por leito ou por produção, levando a equipes subdimensionadas e sobrecarregadas.
Caminhos possíveis para reduzir a lacuna
Alguns movimentos podem ajudar a fechar esses buracos:
Atualização legislativa
Revisão de leis antigas (como a Lei 5.991/73) à luz da realidade atual de hospitais de alta complexidade e do conceito moderno de farmácia clínica;Normas específicas para serviços intra-hospitalares
Regulamentar de forma clara a farmácia satélite e o dispensário de medicamentos como extensão da farmácia hospitalar – exigindo presença ou cobertura farmacêutica adequada;Incorporação de padrões de segurança em contratos e acreditações
Transformar recomendações de boas práticas em exigência mínima em contratos com o SUS, convênios e acreditações;Transparência para o paciente
Tornar público, por exemplo, quantos farmacêuticos, enfermeiros e outros profissionais a instituição mantém por leito ou setor – para que o usuário também seja agente de cobrança por segurança.
Em Síntese: lacuna normativa não é detalhe técnico, é risco direto para o paciente
Quando a lei não enxerga a complexidade da rotina hospitalar, quem fica desprotegido é o paciente, e quem sofre na ponta são as equipes que tentam “fazer milagre” com estrutura incompleta.
A discussão sobre lacunas normativas na saúde não é apenas jurídica: ela passa por gestão de risco, ética profissional, segurança do paciente e justiça social. Enquanto houver brechas que permitam o funcionamento de farmácias satélites e dispensários sem farmacêutico, ou unidades críticas sem cobertura adequada, estaremos aceitando um nível de risco que poderia ser evitado.
📌 Segurança do paciente começa com estruturas adequadas e normas claras
✔ Entenda os riscos reais da falta de regulamentação, especialmente em farmácias satélites, dispensários e unidades críticas.
✔ Saiba por que a presença do farmacêutico é essencial para prevenir erros de medicação, eventos adversos e danos graves ao paciente.
✔ Identifique lacunas normativas que afetam hospitais, laboratórios e serviços de urgência.
✔ Acompanhe análises criteriosas sobre legislação, gestão de risco e boas práticas de saúde.
✔ Fortaleça sua prática profissional com informação confiável e atualizada.
👉 Importante:
Este conteúdo é informativo. Para qualquer dúvida sobre normas, responsabilidades técnicas ou segurança medicamentosa, consulte seu gestor, conselho profissional ou equipe jurídica especializada.
👉 Continue aprendendo no Alerta Saúde:
Artigos, análises técnicas e materiais exclusivos em:
🔗 www.alertasaude.com
📚 Fontes e referências utilizadas
Legislação e normativas
Lei nº 5.991/1973 — Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de medicamentos.
Lei nº 13.021/2014 — Redefine farmácia como estabelecimento de saúde e reforça presença do farmacêutico.
Portaria GM/MS nº 4.283/2010 — Diretrizes para organização da Assistência Farmacêutica no SUS.
ANVISA – Resoluções e materiais do Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP).
Diretrizes profissionais
Sbrafh — Padrões Mínimos para Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde.
Sociedade Brasileira para Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (SOBRASP).
Jurisprudência e entendimentos
STJ – Jurisprudência consolidada sobre dispensários de medicamentos não estarem sujeitos à obrigatoriedade de farmacêutico em tempo integral, quando não caracterizados como farmácia/drogaria.
Decisões judiciais sobre responsabilidade técnica e abrangência da Lei 5.991/73.
Segurança do Paciente
ANVISA / PNSP – Documentos sobre eventos adversos e erros de medicação.
Pesquisa nacional sobre implantação da segurança do paciente em hospitais brasileiros.

