Por que alguns laboratórios restringem a liberação de certos achados para evitar conflitos com exames complementares?

Entenda como padrões internos, POPs e coerência diagnóstica influenciam a liberação de achados laboratoriais

10/12/2025

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Comunicação entre setores do laboratório: quando um achado interfere no outro e o silêncio vira risco para o paciente

A rotina de um laboratório clínico é uma engrenagem complexa: hematologia, bioquímica, microbiologia, urinálise, imunologia e biologia molecular produzem resultados que, juntos, constroem o raciocínio clínico do médico. Quando essa engrenagem falha — especialmente por falta de comunicação entre setores — surgem conflitos diagnósticos, laudos incoerentes e riscos que poderiam ser evitados.

O problema piora quando a própria chefia orienta que certos achados não sejam relatados para “evitar retrabalho”, “não conflitar com outro setor” ou “não levantar dúvidas para o médico”.

Isso não é só inadequado: é perigoso, antiético e contrário às boas práticas laboratoriais.

Por que setores diferentes chegam a resultados que podem conflitar?

Essa situação é comum por múltiplos motivos:

1. Diferença de sensibilidade entre métodos

  • Um teste automatizado pode não detectar algo que o microscópio flagra;

  • Um exame molecular pode identificar um agente antes da cultura crescer;

  • A cultura pode ser negativa, mas o exame direto mostrar leveduras ou bactérias.

2. Materiais e fases diferentes da amostra

  • A urinálise vê o sedimento — a cultura vê o crescimento bacteriano;

  • A hematologia avalia a morfologia — a bioquímica, os parâmetros funcionais.

Ambos podem estar certos, mas em pontos distintos da evolução clínica.

3. Tempo de processamento

Exemplo clássico:

  • Urinálise: presença de leveduras;

  • Urocultura: crescimento negativo.

Se o paciente usou antifúngico, se a coleta foi inadequada ou se o fungo não cresceu, isso gera aparente “conflito”.

Para a chefia, é mais fácil suprimir o achado da urinálise do que explicar a divergência.

4. Falta de padronização e POPs desatualizados

Sem critérios claros de:

  • quando relatar;

  • como relatar;

  • e como justificar,

profissionais ficam perdidos, e a chefia “resolve” pelo caminho mais curto: não liberar.

O problema real: silenciar um achado não elimina o risco — só esconde

Quando a chefia orienta:

“Melhor não colocar isso no laudo, vai gerar conflito.”

O que realmente acontece é:

❌ O laudo se torna incompleto

O médico baseia decisões em informações faltando.

❌ O paciente pode receber diagnóstico atrasado ou errado

Particularmente grave em:

  • infecções;

  • distúrbios renais;

  • hematopatias;

  • situações críticas na urgência.

❌ Risco de responsabilização ética e legal

Omissão deliberada é vista como falsificação ou adulteração de laudo, mesmo que a intenção tenha sido evitar conflito interno.

❌ Cultura nociva ao laboratório

Profissionais aprendem a “não relatar” e não a comunicar corretamente.

Exemplos reais de conflitos comuns entre setores

✔ Urinálise x Urocultura

  • UAs relatando: “presença de leveduras abundantemente”

  • Chefia orientando retirar por “conflito com cultura negativa”.
    Erro grave: cultura negativa não invalida um achado direto.

✔ Hematologia x Bioquímica

  • Hemograma indicando anisocitose importante

  • Bioquímica mostrando ferritina normal
    Chefias podem pedir “moderar a descrição” para evitar questionamentos clínicos.

✔ Bacterioscopia x Cultura

  • Gram direto mostrando cocos Gram positivos

  • Cultura crescendo apenas contaminantes
    Suprimir o Gram priva o médico de suspeitar quadro parcialmente tratado.

✔ Parasitologia x Molecular

  • Exame direto mostrando estruturas sugestivas

  • PCR negativo
    → O correto é relatar ambos e interpretar à luz da técnica, não omitir.

Por que isso acontece? Falhas de comunicação interna

O laboratório não é um setor único — é um ecossistema. Quando não há:

  • reuniões intersetoriais;

  • POPs integrados;

  • discussões de caso;

  • cultura de segurança;

  • chefias técnicas presentes.

as áreas trabalham isoladamente, e divergências viram conflito — e conflito vira omissão.

O que as boas práticas recomendam?

1. Relatar achados com clareza e coerência

Mesmo quando conflitantes.

2. Usar campo de observações de forma inteligente

Exemplo:

“Presença de leveduras ao exame microscópico. A cultura correspondente apresentou ausência de crescimento. Divergência pode estar relacionada a antifúngico prévio, baixa viabilidade ou fase evolutiva da infecção.”

3. Comunicação imediata entre setores

Se um setor encontra algo que impacta outro, deve haver:

  • confirmação;

  • discussão;

  • consenso técnico.

4. POPs atualizados e integrados

Com critérios de:

  • quando relatar;

  • quando complementar;

  • como justificar divergências.

5. Cultura de transparência

A equipe precisa sentir que relatar corretamente é mais importante que “não gerar problema”.

A chefia tem papel decisivo — para o bem ou para o mal

Chefias técnicas que:

✔ apoiam a equipe,
✔ valorizam achados,
✔ estimulam comunicação,
✔ discutem divergências,

elevam o laboratório a outro patamar.

Já chefias que:

❌ mandam retirar achados,
❌ preferem “não mexer com setor X”,
❌ temem justificativas clínicas,
❌ priorizam aparência de coerência ao invés de coerência real,

transformam o laudo em um documento incompleto, arriscado e eticamente frágil.

Em Síntese: o laudo deve refletir a verdade técnica, não o medo do conflito

Quando um setor encontra algo que outro não confirma, o caminho nunca deve ser omitir.

O caminho correto é:

  • comunicar,

  • revisar,

  • correlacionar,

  • justificar,

  • documentar,

  • relatar.

A coerência diagnóstica nasce da comunicação — não do silêncio.

O laboratório é responsável por transmitir a verdade da amostra, não a conveniência administrativa da chefia.

Quando isso é entendido e aplicado, ganha o profissional, ganha o médico e, principalmente, ganha o paciente.

📌 Comunicação entre setores é segurança: fortaleça seu laboratório

  • Aprenda a relatar achados divergentes sem medo, usando justificativas técnicas claras e embasadas.

  • Implemente POPs integrados entre hematologia, bioquímica, microbiologia, urinálise e outros setores.

  • Melhore a comunicação intersetorial para evitar laudos incoerentes, retrabalho e riscos ao paciente.

  • Fortaleça a cultura de transparência, substituindo o “não libera isso” por “vamos entender o porquê”.

  • Desenvolva uma postura técnica segura que valorize o achado e não a conveniência administrativa.

👉 Importante:

Este conteúdo é informativo. Para dúvidas sobre condutas, responsabilidade técnica e gestão laboratorial, consulte a chefia técnica, órgãos reguladores e conselhos profissionais.

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📚 Fontes e referências confiáveis

Segurança do paciente e comunicação

  • ANVISA — Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Diretrizes para comunicação efetiva e prevenção de eventos adversos.

  • WHO — World Health Organization. Patient Safety Curriculum Guide. Comunicação entre equipes como barreira de segurança.

  • E-book: Boas Práticas Laboratoriais: Você Pratica? – Referência prática sobre condutas, coerência diagnóstica, comunicação entre setores e integridade na liberação de laudos.

Boas práticas laboratoriais

  • SBPC/ML — Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial. Manuais de boas práticas, controle de qualidade e critérios para liberação de laudos.

  • CLSI (Clinical and Laboratory Standards Institute). Normas internacionais para validação, coerência e interpretação de resultados laboratoriais.

Erros diagnósticos e discrepâncias intersetoriais

  • ECRI Institute. Relatórios sobre discrepâncias entre exames complementares e a importância da comunicação laboratorial na prevenção de eventos adversos.

  • UpToDate — “Interpretação de exames laboratoriais divergentes”. Discussões sobre resultados conflitantes entre setores e como abordá-los.

Ética e responsabilidade técnica

  • CFBM/CFM/COFEN/CRF e demais conselhos profissionais. Normas sobre veracidade e integridade na emissão de laudos.

  • Código de Ética Biomédica / Código de Ética Farmacêutica. Proibição de omissão de achados e adulteração de resultados.

Nem tudo se libera no laudo — coerência também é segurança